Mapa da zona cafeeira fluminense em concepção de 1882,
indicando a cidade de São João Marcos - Eduardo Canabrava Barreiros, 1972
A
HISTÓRIA SUBMERSA DA REPRESA DE LAJES
Esta é mais uma
daquelas histórias que nossos livros escolares não contam ou o fazem
superficialmente. Mais um episódio dramático da vida brasileira que se perde no
tempo pela falta de credibilidade de nossa historiografia oficial.
Parte 1 - O
Esplendor
A Represa do Ribeirão das Lajes abastece os municípios de Seropédica ,
Itaguaí e parte do município do Rio de Janeiro com água potável e faz funcionar
a hidrelétrica de Fontes Nova, a 50 km da capital. Nesta série, você verá que
nem tudo é paz e tranqüilidade sob as calmas águas dos enormes lagos que serpenteiam entre as
montanhas da Serra das Araras, reduto de hotéis-fazenda, casarões campestres e
resquícios da história colonial.
Esta história pode ser
contada a partir da biografia de uma das
maiores cidades fluminenses do século 19, a então riquíssima São João Marcos,
anteriormente conhecida como Vila de São João Príncipe.
Nos idos de 1700, o
desbravamento pelos bandeirantes da região do Vale do Rio Paraíba compreendida
entre Resende (antiga "Campo Alegre de Paraíba Nova") até a cidade de
Paraíba do Sul possibilitou a construção de uma estrada real para que os
paulistas pudessem enviar, com segurança, os quintos do ouro para o Rio de
Janeiro.
Este caminho serviu de
esboço para a atual rodovia Presidente Dutra (Rio-S. Paulo) e foi o principal
acesso, no século seguinte, para as centenas de fazendas que transformaram o
sudoeste fluminense numa das regiões mais ricas não apenas do Brasil, mas do
mundo. São João Marcos era um dos principais núcleos produtivos - 2 milhões de
arrobas de café por ano - e estava numa posição geográfica privilegiada: no
centro da área produtora, na confluência de grandes rios, próximo à capital
(Corte) e com ligação direta com o mar via Mangaratiba - estas vantagens,
paradoxalmente, colaboraram para a tragédia da cidade, como veremos mais
adiante.
Terra natal do Prefeito Pereira Passos e do ministro e acadêmico da ABL Ataulfo
de Paiva, São João Marcos viveu intensamente o brilho da era dos barões do
café, no século XIX: foi uma das mais importantes cidades, com 20.000
habitantes, teatros, escolas públicas e fábricas.
Artistas de óperas e músicos
conhecidos eram trazidos do exterior para se apresentarem nos diversos teatros
da sociedade local (as ruínas de um deles existem até hoje, à beira da rodovia
Rio-Santos, em Mangaratiba); as muitas famílias abastadas contratavam
governantas estrangeiras e professores particulares (preceptores) para educação
privada de suas crianças; bibliotecas inteiras e instrumentos musicais chegavam
em carroças e lombo de mulas; arquitetos e mestres-de-obras famosos eram
chamados para erguerem novas casas e prédios públicos.
Também foi em São João Marcos que construíram a primeira estrada de rodagem do
Brasil, em 1856, com 40 km de extensão, para escoar o café das fazendas do Vale
do Paraíba para o Porto de Mangaratiba. No sentido inverso, em tráfego intenso,
subiam mercadorias e escravos, muitos escravos. Só o maior fazendeiro da região
e homem mais rico do Brasil em todos os tempos, o Comendador Joaquim José
Breves, considerado "o rei do café" no Brasil Imperial, tinha oficialmente
6 mil negros - na realidade, especula-se que tivesse o dobro disso, contando os
não registrados.
Como berço da expansão
cafeeira no Vale do Paraíba, São João Marcos abrigou em suas terras os mais
poderosos e abastados fazendeiros do País e suas plantações abasteceram o
mercado europeu do século XIX. Mas seu fim estava próximo e seria marcado por
uma longa e incrível sucessão de acontecimentos sombrios.
Mapa com relevo da Serra das Araras, indicando São João Marcos,
concepção de 1882 -
Eduardo Canabrava Barreiros
Criada em 1733,
São João Marcos atingiu o auge da prosperidade no século seguinte, com a
expansão da cultura cafeeira fluminense. O padrão de vida elevado e os recursos
investidos em educação, cultura e bem-estar justificavam a adoção do termo "barão"
para designar os refinados latifundiários fluminenses, em oposição aos
"coronéis", como eram chamados os fazendeiros do resto do País
(poderosos porém truculentos, sem polimento social).
Parte 2 - O começo do fim
Em 1854, Irineu Evangelista de Souza inaugurou a primeira ferrovia do
Brasil, ligando Mauá a Raiz da Serra, no fundo da Baía de Guanabara. A
proliferação dos trens causou a decadência de muitas vilas e povoados, já que a
preferência geral passou para o transporte ferroviário, mais rápido e seguro
que os lombos de burro, pequenas embarcações e carroças antes utilizadas. São
João Marcos não ficou imune à queda no movimento de tropeiros pelo caminho
velho (que vinha de São Paulo) e acusou uma grave perda no comércio.
Mas o infortúnio não costuma
andar desacompanhado: além de vir apresentando queda de rendimento em
decorrência do esgotamento das terras, a produção cafeeira fluminense sofreu
outro golpe em 1889, com a abolição da escravidão. Os fazendeiros não
conseguiram suprir a necessidade de grandes contingentes humanos para trabalhar
nas plantações e a produção caiu a níveis desastrosos. Enquanto isso, os
agricultores do Oeste Paulista, com lavouras mais recentes e contando com
lavradores assalariados, meeiros e imigrantes, assumiram a liderança do mercado
rapidamente.
A situação estava péssima
para a cidade. Com a decadência da cultura cafeeira fluminense e o
desenvolvimento dos novos meios de transporte, São João Marcos foi perdendo
importância e sua população ficou reduzida a pouco mais de 7 mil pessoas no
início do século 20.
Resistindo bravamente à
decadência, a população e autoridades de São João Marcos tentaram se adaptar
aos novos tempos e apoiaram o que seria a grande esperança de recuperação da
economia local: a construção da Estrada de Ferro entre Barra Mansa e Angra dos
Reis. Realmente, a ferrovia trouxe de volta o antigo ar de prosperidade e novas
possibilidades começavam a ser desenhadas para o futuro de São João Marcos.
Enquanto isso, a menos de
100 quilômetros dali, a cidade do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, se
desenvolvia aceleradamente, o mesmo acontecendo com os municípios vizinhos. Era
o ano de 1907, a população aumentava e a ordem era transformar a capital numa
metrópole moderna, orgulho da república. A grande questão era onde conseguir as
fontes dos recursos exigidos pelo progresso, como energia elétrica e água
potável encanada, por exemplo.
A solução já estava em mãos
dos engenheiros da Light (cia. de eletricidade do Rio), que havia dois anos
estudavam as possibilidades para suprir a crescente demanda. E a melhor opção,
segundo eles, era criar uma represa e uma hidrelétrica no Ribeirão das Lajes,
no alto da Serra das Araras. Só tinha um probleminha: 97 grandes fazendas iriam
ficar debaixo d'água. Justamente as maiores propriedades da área rural de São
João Marcos.
Planta de São João Marcos e arredores -
Departamento de Patrimônio da Light, 1913
Combalidos
economicamente e sem o poder político de outrora, os fazendeiros de São João
Marcos pouco puderam fazer contra a inundação de suas terras, a não ser
reclamar. Ofícios, atas, moções e comunicados da época retratam o sofrimento
dos moradores e mostram com riqueza de detalhes o desespero das autoridades
locais com o início da construção da Represa de Ribeirão das Lajes.
Parte 3 - A
inundação, as mortes, o horror
Havia um silêncio compactuado do governo quando a obra foi liberada para
a Light, em 1907. A represa, com capacidade inicial para 224 milhões litros de
água, abasteceria de eletricidade o Rio de Janeiro e dezenas de municípios
vizinhos.
A inundação teve início: os
morros logo se transformaram em ilhas e uma centena de fazendas coloniais foi
tragada. Os luxuosos teatros, bibliotecas e capelas desapareceram da noite para
o dia. Plantações e casas sumiram sob as águas turvas do Ribeirão das Lajes e
seus afluentes. Enormes áreas da zona rural submergiram e muitos caboclos foram
pegos de surpresa.
As águas subiram rapidamente
- talvez mais rápido do que o esperado - e alguns milhares de galinhas, cães,
vacas, mulas e carneiros ficaram encurralados. Morreram afogados ou de fome e
jaziam apodrecendo na beira d'água. A inundação formou extensas áreas
alagadiças às margens da represa, acumulando grande quantidade de restos
orgânicos, e o mau-cheiro se espalhou por quilômetros, durante vários
meses.
Nenhuma assistência foi
prestada à população rural e nem houve um planejamento tático para a operação.
Fecharam as comportas da represa e salve-se quem puder. As famílias pobres não
tinham para onde ir, outras não acreditavam "nessa tal inundação", e
ficaram. E morreram.
A falta de cuidados
sanitários fez proliferar a malária, antes restrita a algumas áreas isoladas da
região, como a localidade de Arrozal. A doença espalhou-se e tornou-se uma
terrível epidemia, fazendo sucumbir milhares de pessoas nas cercanias da
represa, sem alarde. Metade dos 7.000 habitantes da outrora invejável São João
Marcos foi contaminada pela peste.
Os que restaram foram
protagonistas de terríveis histórias, como a presenciada e documentada por Luís
Ascendino Dantas, líder comunitário local:
"... em uma das casas,
uma mulher morta tinha em seu colo uma criança que ainda mamava, e a seus pés
outra que chorava."
O relato deixado pelo
fazendeiros Agrippino Griecco e Luiz de Souza Breves descreve outras cenas
trágicas:
"No pior período da
epidemia, abriam-se valas enormes no cemitério e muita gente ainda viva foi
para a cova de cambulhada com os defuntos. Nos arredores encontravam-se cães
devorando cadáveres e achou-se até uma criancinha morta..."
A população pediu
desesperadamente por auxílio, mas nada foi feito. Uma tácita cumplicidade entre
o governo, os grandes jornais e a Light, visando o interesse maior do Distrito
Federal, impôs a silenciosa quarentena de duas décadas em que se arrastou a
trágica agonia dos habitantes das redondezas de São João Marcos. Um ato de
genocídio que foi, simplesmente, "esquecido" por nossa
história.
Os poucos habitantes que
resistiram no centro urbano do município sobreviveram isolados, no mais
completo esquecimento, deixados lá para morrer. Suas terras submersas, sua
população dizimada pela peste e sua economia extinta - mas não sua esperança.
Ainda havia vida. E haveria mais e maiores tragédias.
Mapa "Partie du Bresil. Amer. Merid. 28", de Philippe
Vandermaelen, Bruxelas, 1827
Região de São João Marcos do Príncipe
Desde o início
da inundação, em 1907, e por mais de vinte anos até que a malária fosse
erradicada da região, ninguém falou de São João Marcos do Príncipe, foi como se
a cidade não existisse. Ali perto, entretanto, a The Rio de Janeiro Tramway,
Light and Power Co. Ltd. operava à plena força a lucrativa Usina de Fontes, sua
primeira grande hidrelétrica, movida pela água da represa do Ribeirão das Lajes.
Parte 4 - A
bonança
A decadência de S. J. Marcos foi tão forte que, em 1938, o governo
estadual decretou a sua anexação, como distrito, ao pequeno município vizinho
de Rio Claro - uma humilhação para aquela que fora a cidade com maior poder
aquisitivo e melhor padrão de vida do País.
Restava na cidade a
população mais pobre e simples, que aos poucos reencontrava a alegria de viver
e tentava superar a tragédia. Os carnavais de SJM e as festas do padroeiro
ficaram famosas e passaram a atrair turistas. A cidade renascia. Havia a
disputa entre as fanfarras e clubes locais, animando a cidade. Bloco
carnavalesco era um só, mas tocavam duas bandas, a do Maestro Modesto Loyola e
a do Maestro Juca Mal. Tinha desfile de carros alegóricos, escola de samba e
concurso de fantasias. Fora das festas, os marcossenses seguiam a vida:
plantavam, criavam, (re) construíam e estudavam.
O Rio de Janeiro continuava
crescendo e a Light, na década de 1930, começou a projetar a expansão da
represa de Lages, o que levaria, inevitavelmente, à extinção de S. J. Marcos.
Os argumentos que a companhia, as
autoridades governamentais e alguns jornais do Rio de Janeiro utilizavam para
justificar a completa destruição da cidade eram:
a) a necessidade urgente de
ampliar o abastecimento de água para a cidade do Rio de Janeiro, então Capital
Federal;
b) ampliar a geração de
energia elétrica, motor fundamental da industrialização que se iniciava no
RJ.
Em 1939, uma reportagem de O
Globo informava, com entusiasmo, que a Light comprara 78 fazendas e algumas
casas da cidade, pretendendo adquirir toda a área de São João Marcos para
inundá-la. Era o começo da campanha a favor da expansão da represa. A notícia
das verdadeiras intenções da companhia surpreendeu os moradores de SJM, que
iniciaram um desesperado movimento por socorro.
De um lado, a Light, a
grande imprensa e os governos estadual e
federal queriam destruir a cidade; de outro, o povo queria preservá-la. Quando
tudo parecia perdido, os moradores ganharam um apoio inesperado: o departamento
cultural do Estado, representado por Rodrigo Mello Franco de Andrade, indicou a
cidade como "monumento cultural" e exigiu a sua preservação.
A questão repercutiu na
imprensa fluminense e, no mesmo ano, o Serviço de Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional - SPHAN, tombou a cidade. Classificada oficialmente como
"raro exemplo intacto de conjunto de arquitetura colonial", São João
Marcos finalmente estava salva, fora do alcance da temível Light. Pelo menos,
assim pensava e comemorava o povo, que não conhecia o poder de donos de
jornais, da multinacional e do Estado Novo.
Mapa Geral da Republica dos Estados Unidos do Brasil, de Miguel Calmon,
1908
Em 1939, os
marcossenses fizeram uma grande festa para comemorar a decretação de monumento
nacional e o bicentenário da cidade. Enquanto isso, a Light ameaçava reduzir a
geração de energia caso a expansão da barragem de Lajes não fosse autorizada. A
poderosa companhia canadense, inglesa e americana detinha, além da geração e
distribuição de energia elétrica, os serviços de bondes, ônibus, telefones e
gás do Rio de Janeiro.
Parte 5 - O "destombamento"
O governo cedeu à pressão da Light e o presidente Getúlio Vargas entregou
a cidade, desconsiderando a decisão do SPHAN e as reivindicações da população.
Escandaloso, foi o primeiro caso de "destombamento" no Brasil. O
decreto-lei nº 2.269 autorizou a desapropriação de terrenos, prédios e
quaisquer benfeitorias que viessem a ser inundadas.
No contexto autoritário do
Estado Novo, a população não teve outra saída que se submeter. Como a
desapropriação era obrigatória, a Light ficou à vontade para ignorar o valor de
mercado e avaliar as propriedades conforme a sua própria conveniência. Os
moradores receberam indenizações miseráveis que não lhes permitiram comprar
sequer um lote nas cidades vizinhas de Lídice, Rio Claro, Mangaratiba, Itaguaí
ou Piraí.
Para a opinião pública da
capital, os jornais descreveram um quadro muito mais favorável que a realidade.
Promessas foram feitas e decretos assinados com o objetivo de garantir a
reconstrução da cidade em outro local - e nada foi cumprido.
A desocupação foi cruel: a
Light "indenizava" e imediatamente as pessoas tinham que sair de
casa, levando apenas os móveis, em caminhões da empresa. Imediatamente entravam
os operários com marretas e demoliam tudo. O madeirame era empilhado e
queimado. Em vão, os moradores pediam para levar as madeiras para construírem
barracos em outros lugares.
Nas palavras de Wilson
Coelho, vítima da desapropriação:"... olha, a Light (...) era estrangeira,
ela preferia queimar tudo e não dava, não dava um pau, uma 'tauba' pra ninguém.
Nem dava, nem vendia, tá entendendo?”.
As demolições começaram numa
Quinta-Feira Santa. A população protestou, saindo pelas ruas com cartazes que
diziam: "somos 4.600 brasileiros e não queremos desaparecer". De nada
adiantou, as turmas de operários com marretas se sucederam, os prédios próximos
da represa foram demolidos por barcos rebocadores com cabos de aço e o restante
dos quarteirões foi reduzido a pedregulhos pela dinamite.
O caso mais traumático foi o
da Igreja Matriz. Sua construção datava de 1796, com arquitetura maneirista,
típica dos jesuítas, e barroca; seu interior era todo decorado em ouro. Os
operários se recusaram a mexer com o prédio sagrado e a construção era tão
sólida que os recursos "normais" de demolição não seriam suficientes.
A Light, então, contratou um
especialista, Sr. Dudu, de Rio Claro, para dinamitá-la. Consta que, por
coincidência ou maldição, o dinamitador logo
depois do serviço ficou "corcunda" e perdeu tudo, terminando seus
dias como jardineiro no colégio de freiras de Valença, RJ.
Como a questão da derrubada
da Matriz despertou o clamor público e a indignação dos católicos, o governo
baixou um decreto (3 de junho de 1940) que obrigava a Light a reconstruir o
templo em local próximo e a salvo das águas. Acalmados os ânimos, três anos
mais tarde, a empresa se veria livre da obrigação por novo decreto (nº 5.739)
que substituiu a reconstrução da Matriz por uma simples indenização de 600
contos de réis ao Estado.
Apenas o cemitério foi
respeitado e parcialmente transferido para o alto de um morro. São João Marcos
finalmente estava extinta, em ruínas. Era hora de levá-la para o fundo das
águas.
Mapa digital da
Serra das Araras, indicando a Represa de Ribeirão das Lajes, 2005
Pouco antes de
ser posto abaixo, em 1940, o centro de São João Marcos tinha, além da Igreja
Matriz, uma antiga capela, pertencente à Irmandade Nossa Senhora do Rosário e
dedicada a São Benedito; dois cemitérios, o da Irmandade e o da Caridade para
os pobres; dois clubes, o "Marquense", de elite, com futebol e
danças, e o "Prazer das Morenas", mais popular; um teatro, o
"Tibiriçá"; um hospital e uma pensão, além da primeira estrada de
rodagem do Brasil, aberta nos tempos áureos do café. Já não circulava mais o
jornal local, "O Município", fechado em 1932. Um pouco afastadas, uma
jazida de manganês inexplorada e uma fonte de água mineral.
Parte 6 - O fim
À distância, do alto dos morros, ex-moradores, curiosos e funcionários da
Light acampados precariamente se acotovelavam para verem sumir a terra que um
dia abasteceu toda a Europa de café. Pela segunda vez, São João Marcos seria
inundada pelas águas revoltosas e turvas que apagavam os rastros de 200 anos de
trabalho, fausto e progresso. A cada dia elas se aproximavam mais do centro da
cidade, e foram subindo, subindo, até que estancaram - sem alcançar as ruínas
da demolição.
Logo surgiu o rumor de que
os técnicos da Light haviam errado os cálculos e que a demolição de São João
Marcos tinha sido desnecessária, pois a água se nivelara bem abaixo do nível da
cidade. A população começou a se revoltar e, segundo alguns operários da Light contaram depois, a ordem superior veio rápida:
"era preciso inundar a cidade, a qualquer custo!" E quase custou a
própria represa, pois foi preciso fechar as comportas e fazer o nível subir
além dos limites máximos de segurança da barragem.
A água apenas molhou alguns
centímetros das ruínas de SJM, o suficiente para "justificar" a
expulsão dos 5 mil moradores, a estúpida agressão ambiental e o desaparecimento
de dois séculos de nossa história. Desde então, jamais a represa tornou a
alcançar a cidade, nem nos períodos de chuva mais intensa. A brutal destruição
de SJM foi mesmo uma burrada de engenharia. Tanto sofrimento por um erro na prancheta.
Hoje, resta pouco de São
João Marcos do Príncipe. Virou local de pastagem. Ainda existem alguns
calçamentos em meio ao matagal. Caminhando pela antiga rua principal,
avistam-se algumas ruínas. Uma única ponte resiste , intacta, como se ainda esperasse
por passantes. No alto do morro, o cemitério público; o branco dos túmulos
salta entre o verde, lembrando que, num passado não muito distante, aquela
cidade teve vida e foi habitada por algo mais que pequenos pássaros.
O esquecimento está por toda
parte, escondido sob cada pedra, nas ruínas e na História. Mas agora vocês
sabem. E isso muda tudo.
Fonte: Prof. Celso de
Martin Serqueira